24 de jul. de 2007

I LOVE SAMPA

Esta crônica é de 2003.

I LOVE SAMPA

Durante uma viagem de lotação pela Vila Madalena, vi um carro com placa da minha cidade natal parado no sinal e voltei cinco anos no tempo, quando decidi vir morar na capital paulista.
            Diferente da maioria que vem pra cá atrás de grana, meu sonho era ter opções de filmes nos cinemas. Lia no jornal que estava estreando um filme interessante e rezava um terço para que ele fosse exibido logo (ou um dia) no único cinema da cidade. E os shows? Qual era a probabilidade de Zélia Duncan, Lenine e Madredeus baixarem lá em Botucatu num único mês? Nem na matemática dos milagres!
            Um grito me acordou:
-       Vai descer!
            Era uma senhora cheia de sacolas tentando chegar logo à porta de saída. Ela mesma ia descer. É engraçado este bordão de usuários de lotação, a própria pessoa grita: “Vai descer!”  Quem vai descer? Eu! Eu vai descer!
            Mas eu não desceu, então continuei minha retrospectiva. Está certo que eu ainda não imaginava o quanto a relação custo/benefício paulistana era peculiar. Três shows maravilhosos num único mês tinham um preço. Quanto ao cinema, também descobri que não dava para sair de casa dez minutos antes de começar o filme  e chegar a tempo de comprar o ingresso; estacionar o carro na frente do cinema, de graça, e ainda encontrá-lo intacto ao término da sessão; conseguir, só com uma nota de dez reais, pagar a entrada e a pipoca  e ainda voltar com o troco (leia-se: não há flanelinhas ).  De qualquer forma, acabamos aprendendo que tudo aqui é proporcional ao tamanho da cidade...
            - Licença!
Um senhor sentou-se ao meu lado, sorrindo muito. Não parecia paulistano, mas nordestino. Tive certeza quando puxou conversa com a garota de amarelo  e logo todos riam e falavam ao mesmo tempo:
-       Aquilo num presta não, queria vê se fosse mãe dele!
-       Mas num é?
É impressionante como os nordestinos são desinibidos, corajosos, alegres, solidários. Mas o sangue é quente! Alguém se exaltou com o motorista porque não podia descer fora do ponto. No meio da rua, para ser exata. Os outros motoristas deixavam, por que ele não? Em dois segundos todos estavam a favor do passageiro e o motorista foi obrigado a abrir a porta ali mesmo.
            Pensei que devia comprar um carro... Mas tenho que confessar, só de me imaginar dirigindo aqui passo mal! Eu sou uma só, como é que posso ler as placas, mudar de pista sem me esquecer de dar seta, reparar se o sinal está fechado para todos ou só para a pista da esquerda, saber para onde estou indo, onde fica o retorno, tudo isso a mais de sessenta por hora, ficar de olho porque alguém pode quebrar meu vidro e me assaltar, e ainda me preocupar se um doido não vai pular do lotação, bem em cima do meu capô? No mais, andar de ônibus em São Paulo não é tão ruim. Dá, por exemplo, para fazer compras: balinhas, adesivos, canetas, chaveiros. Aceita passe que, afinal, é uma moeda corrente como outra qualquer.  Às vezes fazem apresentações musicais, que podem ser instrumentais, à capela ou violão e voz. E você só paga se gostar! Há monólogos também: testemunhos, depoimentos, pedidos de ajuda. Alguns me tocam pela estória ou pela capacidade de persuasão. Outros pela cara de pau. Há quem consiga até dormir! E não são poucos, principalmente quando chove (não pelo barulhinho bom da chuva, mas porque o trânsito fica parado por horas). Enfim, pode ser uma aventura! Ah, só convém se lembrar de não pegar ônibus quando tiver jogo do Corinthians! Pensando bem, talvez um dia eu dirija...
            - Vou descer! gritei, só pra sacanear. Mas ninguém reparou no meu português.
Já na rua, fui tomada por um conforto e uma gratidão inexplicáveis. Vi o quanto amo São Paulo. Não importa meu português, nem a cor do meu cabelo. Aqui pulsa vida, pulsa diversidade. Chega a ser uma promiscuidade isso, pizza com forró, yakissoba com caldo de cana! Sempre tem alguém oferecendo o que a gente precisa e alguém precisando do que a gente oferece. A terra da garoa é fértil: em se plantando, tudo dá!
Então descobri que é esse o irresistível charme de Sampa: a fertilidade. Uma fertilidade que faz brotar toda e qualquer semente criativa, democraticamente!

Agora já não vou tanto ao cinema, morro de sono. Ironicamente, às vezes até penso em ter uma casinha de campo para uma escapadinha vez ou outra. Mas a fertilidade - que só tem aqui  - fecundou tudo ao meu redor. A semente que eu trouxe há cinco anos começou a brotar assim que cheguei. Já me rendeu frutos muito saborosos, que ainda estou degustando, e novas sementes também. Para os padrões da minha terra já seria um banquete! Mas, como tudo é grande por aqui, talvez eu esteja só no aperitivo...


18 de jul. de 2007

MENINO-TATU


2006 - Em Lagoinha (Ceará), em férias de muitas emoções contraditórias. Este menino tinha um tatu e tirava fotos com ele por 1 real.


Menino-tatu


Menino-tatu, menino-descalço
Menino-barriga, menino-robô
Menino-sem-graça, menino-cansado
Menino-pele-de-sol-olhos-de-areia
Menino-bonito, menino-rotina
Menino-luta, menino-tábua-de-salvação
Menino-sim, menino-não
Menino-eu
Menino-solidão

JEITINHO BRASILEIRO

2007

JEITINHO BRASILEIRO

Dignidade aviltada é corriqueiro
O que vale mesmo é o dinheiro
Não há o que não se consiga
Com o jeitinho brasileiro
No reino da esperteza
Favores, agrados, conchavos
São sinais da realeza
Qual o limite do que se admite?
Mentira, certo e errado
Quem é culpado?
Todo mundo é tão esperto
Lei de Gérson
Propina
Macunaíma
Nossa suprema idéia
De nação verde-amarela
Passa mais por Macabéa
Na vasta feira das facilidades
Gabaritos, lugares na fila
Negócios da China, pirataria
São tantos os patrocínios
(Patriocídios)
Pra cada rei tantos bobos da côrte
Babando o ovo e sorrindo sem dentes
Pra nossa paz aparente
Crentes que são espertos

ÁTONOS

Sem data, achei no meio de um livro em plena faxina, com uma observação: "ouvindo ZD" (como se precisasse)

ÁTONOS

Adoro os sons de ti
Os “ãs”, os “ons”
Os “us”, os “is”
Os “nãos”, os “sins”
Os átonos tonificados
Os graves em altos brados
Tons e sons bem temperados
Ai meu coração descompassado!

OLHOS E RESPIRAÇÃO

Rascunhos de 1997 resgatados e finalizados em 2007

OLHOS E RESPIRAÇÃO

Chão sem chão
Sou olhos e respiração
Sem respiração
Sinto o ar escasso
Perto ou fora do seu abraço
Enquanto sonho com seu abraço
Sua imagem assim
Intensa
Desliza em mim
Imensa
Cheia de mãos
Vai logo tocando em tudo
Todo meu mundo
Mas no fundo é tudo não
Então
Ardo e respiro
Ou tento
E o ar que me falta se te vejo
É o mesmo que assopra meu desejo

17 de jul. de 2007

NÃO DEU


2007 - Numa tarde à toa olhando a paisagem na Praia Vermelha

NÃO DEU

Não deu praia você e eu
Choveu mais do que devia
Não deu liga
Não deu briga
Não convenceu
Eu não sou eu contigo
Nem amigo nem Romeu
Passei batido
Podia ter sido
Só não deu

REVIDE

2006 - Logo que me mudei pro Rio

REVIDE

Aqui a violência
Está sempre de mãos dadas
Com as mãos atadas
De quem pode nada
Quem pode nada
Nada tem a perder
E, não o tendo,
Pode tudo
O que é absurdo?
Não dá o que te pedem
Não dá o que te excede
Não dá nada mas quer e de graça
Não planta mas colhe e se farta
E se quem vive na escassez
Cansou de esperar sua vez?
E se quem vive esquecido
Cansou de ser invisível?
E se viver à base da pancada
For revide pela existência ignorada?

CORAÇÃO NA BOCA

Esta é de 1996. (Eu já tinha um coração na boca antes de conhecer o da ZD)

CORAÇÃO NA BOCA

A doçura do seu rosto
Me põe o coração na boca
A aflição não é pouca
Mas é boa
E a boca do estômago
Pula e me alcança a garganta
Mas sua doçura é tanta
Que faz carnaval no meu peito
E já nem sei se é o seu jeito
Ou o meu, de te enxergar

5 de jul. de 2007

PRA COMEÇAR

Resolvi ter um blog. Outro dia eu estava num show da Zélia Duncan, no teatro Rival, e meu chão tremeu. Bom, sempre treme, há dez anos vou aos shows dela e há dez anos meu chão treme. Mas desta vez derrubou uns tijolos e estou sendo obrigada a algumas desconstruções. Pra depois construir de novo. E o blog com isso?
Naquela noite ouvi coisas como "come on baby apostar na falta de exatidão" , "benditas coisas que eu não fiz... meus verdes ainda não maduros... os espaços que ainda procuro..." e "chega de tanta sala fechada, tanta fala calada, tanta água parada" . Eu já tinha ouvido, mas ouvir e ver, ao vivo, nesse exato momento da minha vida, derrubou os tijolos.
Não vou contar a estória da minha vida, mas questionei minha timidez, meu medo de me expor. Não seria a timidez uma vaidade? Por que tanta preocupação com o inevitável julgamento alheio sobre mim? O que pode acontecer de tão grave se eu mostrar meus sentimentos? Lembrei da raposa e as uvas, eu me vi nela e não gostei. Seria mais positivo ela buscar ajuda, pegar um banquinho, uma escada, e não matar o desejo pelas uvas só porque elas não estavam acessíveis. Posso cair da escada, mas quero as uvas ou não? Quanto eu as quero?
Vendo a Zélia naquela noite senti minhas uvas mudando de cor, saindo do verde para o vinho e me enchendo a boca d´água. Minhas uvas são tocar bateria e escrever. Em São Paulo eu tinha uma desculpa, trabalhava demais, não tinha tempo nem disposição, me sentia sufocada. Mas agora, aqui no Rio, trabalhando seis horas, sendo impregnada de natureza por todos os lados, a desculpa não cola mais. Está tudo tão mais leve que a desculpa começou a pesar na consciência. E aí veio a Zélia, mais uma vez.
Quanto ao banquinho, já tirei o pó dele e me sentei pra recomeçar a estudar bateria. Estou dando um jeito. Não é o que dizem, que quem quer fazer uma coisa encontra um jeito e quem não quer encontra uma desculpa?
Quanto à escada, é este blog. Aqui vou me dar ao luxo de escrever o que sentir vontade, vou postar meus escritos, minhas letras de futuras músicas, boas ou não, bobas ou não, vou me expor e tentar esquecer que os outros vão julgar (por favor) o que virem. Será o meu exercício pra tentar um dia saborear minhas uvas. Pra começar.
* Créditos das músicas citadas: "Tudo ou Nada" - Itamar Assumpção e Alice Ruiz; "Benditas" - Mart´nália e Zélia Duncan; "Chega Disso" - Alzira Espíndola e Arruda. Todas do CD "Pré Pós Tudo Bossa Band", da Zélia Duncan, com exceção da última, apenas no DVD de mesmo nome.