2 de ago. de 2007

FOME DO IMPOSSÍVEL

Publicado na Folha Carioca em maio de 2008

Acordei com uma sensação estranha ontem. Quase como se fosse uma fome do impossível. Fome é urgente, traz desconforto e tem preferências. Eu me lembro da Bethânia cantando algo como “...minha fome não é qualquer coisa que mata...” A minha também não. Uma chatice isso de ser seletivo, mas é antes uma sina que uma escolha. Dizem que quem tem fome não escolhe o alimento, mas isso só vale em termos físicos e não é deste tipo de fome que estou falando. Aliás, meu corpo físico não é dado a grandes fomes, ele se contenta com pouco. Aí, pra compensar, nasci com uma alma faminta. No caso específico de ontem, acordei com uma fome maluca de tocar violoncelo para uma pessoa. Um oco inexplicável. Só que não toco violoncelo, nem tenho um. A única alternativa que encontrei foi ouvir um CD com violoncelo pra ver se aquela sonoridade me dava alguma ilusão de saciedade. Fechei os olhos, senti pulsando na mão o atrito do arco nas cordas, degustei a sutileza daqueles graves com a mesma suavidade com que eram emitidos, senti o cheiro da madeira e quase ouvi o chão ranger sob o peso daquele instrumento. Conforme absorvia a música, ia sentindo algum calor alcançar aquele oco. Quando abri os olhos cheguei de muito longe. Eu não vou saber como teria sido realmente tocar o violoncelo, e para a pessoa que eu queria, mas consegui não morrer de fome. Como cobrar sanidade se às vezes só o delírio salva?

Um comentário:

Anônimo disse...

Ana Paula:
Retribuindo sua visita ao meu blog, encontrei sonoridade e sensibilidade formando uma arquitetura forte, determinada, mas não menos sonhadora, não menos sensível.
Compreendo essa sua "fome". Sei o que é viver de lembranças inexplicáveis. E aí se encaixa a ternura que sinto pela Zélia e que, muito alegra, partilhamos.
Parabéns pelo blog!
Um grande beijo
Janete