17 de abr. de 2015

SOBRE MÃES E CORAGEM

Publicado no jornal Folha Carioca, em maio de 2013.

SOBRE MÃES E CORAGEM

Sempre que o assunto maternidade vem à tona, em algum momento acabo ouvindo, que sou corajosa. E sempre me pergunto: corajosa quem, eu? É uma maneira curiosa de ver as coisas. Não me sinto exatamente corajosa – de um modo geral – mas foram muitas as vezes em que a Renata e eu ouvimos comentários desta natureza. Renata é a outra mãe da minha filha Catarina. A mãe que gestou e amamentou, até o mês passado. Catarina está com 1 ano e 10 meses, é feliz, amo- rosa e dona de uma beleza irradiante (que filho não o é?).
Escrevi aqui na Folha Carioca em maio de 2011, quando estávamos esperando ansiosamente pelo nascimento da minha filha e a maternidade ainda era uma expectativa.
Voltando à questão da coragem, pensei: minha filha foi desejada, chegou na hora escolhida, com tudo preparado para recebê-la. Quando chegou, não bagunçou nossa vida, não quebrou nosso orçamento, não trouxe dificuldades. Tudo que ela trouxe foi uma felicidade absurda com sua presença abençoada. Onde está minha coragem?
Só porque pode vir a acontecer de sermos hostilizadas em algum grau, em razão de sermos uma família homoafetiva? Quantos não são hostilizados pela condição social, por exemplo? O mundo não é gentil com os pobres. Qual a diferença? Só porque pode acontecer de minha filha ouvir na escola coisas do tipo “sua mãe é sapatão”, da boca de alguma criança-papagaio-de-pais- -ignorantes? Quantas não ouvem “macaco, tição”, por serem negras? Qual a diferença?
Em relação à maternidade, muito se fala em noites sem dormir e fraldas a trocar, como se residisse
aí a coragem materna. Passei 9 meses imaginando as tais noites sem dormir, “até os 2 anos da criança”, segundo palpiteiros de plantão, e na prática isso nem aconteceu. Não sei se é questão de sorte, mas o fato é que minha filha sempre dormiu a noite toda e sofri em vão a expectativa. As noites mal dormidas se resumiram aos 20 dias em que ela sofreu de cólicas, deixan- do meu coração arrasado. (Quanto a isso sim poderiam ter me prevenido: coração arrasado).
Deveriam alertar as mães sobre questões realmente relevantes. Por exemplo: ninguém me avisou que eu ficaria num estado de sensibilidade tal que veria na minha filha recém-nascida todos os bebês do mundo. Ela era a materialização da mais profunda e genuína fragilidade humana. Quem estava ali na minha frente era um serzinho que não conseguia nada sozinho, nem mesmo virar a cabeça pra cima, caso se afogasse na banheira. E só vinham pensamentos terríveis na minha mente: “meu Deus, todos tão à mercê de toda sorte de atos desumanos... Que sorte tem a minha filha”. E a sensação de impotência quanto aos de má sorte? Ninguém me preveniu.
Também não me contaram que seria um período em que eu choraria horrores, porque o milagre da vida ali na sua frente, provocando em você um tipo de amor até então inimaginável, com toda aquela fragilidade - e, ao mesmo tempo, uma força da natureza - tudo isso cai sobre a alma da gente como um grito. Impossível não ouvir. Impossível não chorar diante dessa grandeza.
Ninguém me avisou que eu não ia ter tempo suficiente pra curtir aquele bebezinho de alguns dias, porque em muito pouco tempo ele já seria um outro bebê, de 2 meses. E depois um de 4. E 8, 12. Não me avisaram que eu teria uns 6 bebês até minha filha completar um ano, e que eu não teria tempo suficiente pra curtir cada um deles, tanto quanto eu gostaria. No máximo me disseram: passa tão rápido. E não é simples assim, não é só um tempo que passou rápido demais. Trata-se de perdas.
Enfim, se existe coragem de minha parte em ser mãe, talvez ela consista em apenas uma coisa: amar incondicionalmente. É uma experiência realmente única e, com certeza, não é pra todo mundo.
Mas não me sinto mais corajosa que uma mãe hétero, que tem o aval da sociedade pra exercer seu direito à maternidade e tem seu status de família reconhecido pelas leis tortas dos homens. Tudo isso eu e outras mães gays teremos lá na frente, afinal o mundo evolui, a despeito de.
Gays, héteros, pobres, ricas, solteiras, casadas, estamos todas lutando pra deixar seres humanos melhores para o planeta, dando nosso melhor amor e nos preparando para o inevitável vôo das nossas crias.
Talvez por isso a palavra coragem seja um substantivo feminino. Mas eu sou apenas mãe.
(Escrito por Ana Paula Brito, cuidando para se tornar desnecessária um dia, mas torcendo para demorar bastante, mesmo sabendo que o tempo vai voar...)

Nenhum comentário: